Eles não vem com manual...
Até onde vai o direito da criança em expressar o que sente, principalmente a raiva? Qual é o sutil limite entre deixá-la manifestar sua contestação como um desabafo ou colocar os limites necessários?
Primeiro precisamos entender o motivo pelo qual uma criança não pode reprimir todo o seu conteúdo agressivo. Da mesma forma que é arriscado para a estruturação de seu psiquismo a agressão reprimida, também é danoso a falta de limites em sua educação.
Desde que nasce, o bebê mantém uma comunicação de amor e ódio com o seu ambiente, através de suas interações e criações (por mais estranho que isso possa parecer ao imaginarmos um bebezinho). Enquanto essa troca naturalmente ocorre, inicia a formação de seu ego. Dependendo da idade e de sua fase, a criança terá uma forma peculiar de demonstrar seu incômodo ou raiva. E desde sempre a reação do adulto que cuida é crucial para que tenha um desenvolvimento mais ou menos sadio.
Não há como manter um estado de satisfação constante. No mínimo a criança terá fome, sede, dor, sono e precisará tolerar um pouco, viver e sobreviver a um nível de frustração suportável. Espera-se mesmo que isso aconteça para seu contato com o mundo ser possível.
A raiva é um sentimento autêntico e aparece espontaneamente sempre que é mobilizada pela frustração de um desejo ou necessidade, percebidos como fundamentais. Fazer contato com essa energia, reconhecendo-a como parte de si, até dar vazão e voltar a um estado natural de equilíbrio, é um processo contínuo da experiência humana.
Como o curso das águas, se obstáculos surgirem, atalhos serão abertos pela força da natureza. Perde-se a forma original e nem sempre os filetes d’água espalham-se por bons lugares, mas de certo, encontrará um meio de escape. O que não significa que não possa receber um contorno. Como as margens do rio; quanto mais fortes e bem delineadas, mais bonito e com vigor seguirá seu fluxo.
A criança deve expressar o que sente recebendo a contenção para os atos de acordo com sua própria segurança e convivência social, sem sofrer retaliação por parte do adulto que cuida dela .Direito de expressão pode significar até uma permissão verbal clara, quando se diz que entende o fato dela estar zangada.
Falando ou demonstrando importa é que o adulto possa legitimar o sentimento que está de fato ali exposto, que faz parte da criança e não pode ser negativado, com o risco de, no mínimo, anular parte do seu self verdadeiro ou pior, levá-la à dissociação dessa raiva, causando grandes prejuízos. Isto acontece porque a raiva continuará existindo, porém sem consciência, sem contato, escapando sem ser percebida.
Infelizmente assistimos em nossa sociedade crueldades morais, emocionais e físicas que são cometidas nas mais diversas esferas, vindas de pessoas que precisaram um dia bloquear sentimentos intensos e hoje manifestam a conseqüência disso com quem estiver no seu caminho.
Então já está claro que a criança precisa expressar-se, não mais devendo ocorrer frases do tipo " é feio ter raiva" , "engole a raiva" ou "engole o choro". Mas isso significa que quando começar a gritar desesperadamente, bater nas pessoas ou quebrar as coisas em casa devemos deixar ou fingir que não vemos? Nunca! Até porque ela precisa ser vista. Quando um adulto ignora o que a criança faz por não querer ter trabalho, achar que "é coisa da idade", por não saber como agir ou por medo de "traumatizar", cada vez ela fará mais e não estará se sentindo cuidada e amada.
Imagine-se buscando incessantemente algo valioso para a sua sobrevivência emocional e não encontrando. Provavelmente terá uma sensação de insegurança, desproteção ou desesperança. Dependendo da idade ou se seu raciocínio for pouco desenvolvido, pode ser bastante perturbador; quanto menos idade pior. Talvez passe a vida toda buscando algo que nem tenha mais a consciência do que é.
Quando encontra no adulto aquele porto seguro, onde é acolhida, protegida e recebe a contenção necessária, como as firmes margens do rio, sua tendência é fluir com segurança. Podendo se expressar e aprendendo como fazê-lo, sem machucar, sem ferir ninguém, ou burlar regras, tudo tende a caminhar melhor, com o preparo importantíssimo para tolerar as frustrações da vida sem anular o que sente, nem perder-se em fúria desconexa, mas podendo olhar tudo de frente, sem rígidas máscaras, como também é olhada; com verdade e amor.
Vera Estrella
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